O poder que damos às caixas

Chegámos ao séc XXI e continuamos a coleccionar caixas. O “racismo” é uma caixa e o “mee too”, o “populismo”, o “politicamente correcto”, a “religião”, a “direita”, a “esquerda”, etc. Metemos ideias lá dentro e depois manipulamos as caixas como blocos homogéneos, rígidos, des-vitalizados como aquele dente que apenas mantém a forma exterior.

Porque assim é mais práctico e porque na nossa cultura não somos treinados a desmontar e a desconstruir os blocos de software opinativo que andam por aí, em regime de pronto-a-vestir. Os alfaiates saíram de moda e agora é mais caixas, sim, adoramos uma boa caixa. 

A nossa caixa craniana não é uma caixa qualquer. Quando aberta, tem o poder de sair fora de si e fundir-se nas estrelas. O poder de imaginar o que os outros sentem, o que os outros pensam. Todavia, quando a nossa caixa vê as outras caixas, não sai do seu próprio ponto de vista. A única maneira de sairmos fora de nós, e comungarmos uma parte da experiência do outro,  é sairmos da nossa perspectiva, formatada pelo hábito e pelos mecanismos psicológicos que nos levam a pensar que a realidade é aquilo que estamos a ver. A realidade nunca é aquilo que estamos a ver.

Quando navegamos na internet, as janelas que nos aparecem não aparecem “por acaso”. O muito estudado fenómeno psicológico da “atenção selectiva” sempre actuou na vida real como os algoritmos actuam nas redes sociais. Separa, selecciona, edita e aglutina partes do imenso universo disponível, em função da nossa experiência passada, do nosso tipo de atenção e sensibilidade. Ou seja, não tem a tendência de abrir, tem a tendência de reconfirmar o túnel que já construímos, de nos fecharmos na nossa própria maneira de ver, criando um micro-universo que passa por ser, na nossa cabeça, o universo inteiro.  E dizemos: é assim que as coisas são.

A nossa caixa é também uma fábrica de pré-conceitos. Caixas de ideias feitas, com direito a etiqueta e lugar na prateleira dos nossos pensamentos diários. São as ferramentas que temos mais à mão para lidar com as solicitações do mundo social. O verdadeiro preço só aparece mais nítido com algum delay. Durante uns tempos, o dente sem nervo parece cumprir a função. Mandámos desvitalizá-lo porque estava a deteriorar-se e doía. Pensamos que a única forma de não doer é tirar-lhe a vida. Deixámo-lo chegar àquele estado porque não tivemos cosciência do seu estado de decomposição. Só olhámos para ele quando começou a doer. Pode ser demasiado tarde.

As caixas mais sofisticadas são as máscaras que criamos para a nossa auto-imagem. Os papéis que vestimos e ensaiamos durante uma vida inteira. Blocos de pensamentos e atitudes, que usamos em piloto automático, para nos auto-justificarmos e termos um confortável sentido de identidade. Fazêmo-lo, quase inconscientemente, porque nos ensinaram a valorizar a arte da personalidade e a não dispensar a validação da identidade. Pessoalmente, lembro-me do enorme sofrimento juvenil, meu e e alheio, que causei porque precisava, desesperadamente, estar dentro da caixa “homem”.

As caixas, os conceitos, as palavras, precisam ser manipulados com leveza e abertura, desapego até, porque a nossa vida é uma constante relação com o que falta conhecer. Uma relação com o devir e com o infinito. A carne que nos compõe não nos define e aquelas 21 gramas de peso que perdemos ao desencarnar são as mesmas que nos podem tornar mais leves enquanto vivos.  

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2 Comments

Li
Dezembro 17, 2020 3:07 pm

e assim arrumamos a vida. prateleiras cheias de caixas e mais caixas umas em cima das outras. e quem tem a terrível mania, há quem chame irreverência ou mania da contradição, de tentar ver mais além. dissecar os conceitos, ver o avesso? digo eu, que sou cheia de dúvidas onde todos estão cheios de certezas. pô!

Carmo Ribeiro Ferreira Hatton
Dezembro 16, 2020 8:23 pm

Excelente! A solução está sempre fora da caixa, obrigada querido Paulo por nos encantares com as tuas artes, um grande beijinho

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