Onde está a nossa Humanidade

Se “o amor nos tempos de cólera” fosse escrito hoje poderia ter como título “a cultura nos tempos do medo”. É a cultura em que estamos embebidos que determina como pensamos e agimos e não há dúvida de que as máscaras vieram destapar a cara ao medo. O medo anda à solta nas escolas, no bairro, na televisão. As máscaras protegem por um lado. E por outro lado enfraquecem-nos. Não só porque respiramos um ar viciado e nós do que precisamos é de ar livre e de preferência puro. Mas também porque nos dão sinal para nos afastarmos uns dos outros e nós precisamos dos outros para fortalecer o nosso sistema imunitário. Por um lado, precisamos da expressão dos afectos e as pessoas com medo ficam menos disponíveis, mais tensas, mais desconfiadas. Isso enfraquece duplamente o sistema imunitário, o do mudo emissor e o do frustrado receptor. Por outro lado, precisamos dos abraços e do toque que produz as hormonas que nos fortalecem e protegem. E precisamos da transferência de bactérias “boas”. É portanto um paradoxo. Quando nos protegemos externamente estamos a desproteger-nos internamente. O problema principal é o facto de o discurso social apenas incidir na protecção exterior, como se estivessemos todos exclusivamente dependentes do acaso e não pudessemos fazer nada por nós. É isto, um ser humano?, perguntaria Primo Levi. Para o melhor e para o pior, somos seres de contágio e temos que escolher entre regar o contágio que nos une e fortalece e o contágio que nos divide e enfraquece, dando-nos a entender que nos está a salvar. E estamos a falar de ideias, não de vírus. 

A cultura de uma sociedade deve ter como princípio o desenvolvimento harmonioso do colectivo com base no empoderamento do indivíduo. Só indivíduos conscientes do seu valor e da sua igualdade poderão construir e perpetuar uma sociedade valiosa e igualitária. Ou seja, os princípios e qualidades que têm integrados dentro de si serão naturalmente expressos na sua actividade exterior, colectiva. Mas é isso que aprendemos na escola, nas empresas, na imprensa? A nossa é, maioritariamente, uma cultura da forma externa, das receitas fixas, daquilo a que Mahler se referia na frase “A tradição é a transmissão do fogo, não é a adoração das cinzas”. A nossa educação não segue a sua etimologia “ex-ducere”, conduzir (de dentro) para fora, prefere empurrar (de fora) para dentro.

Estamos demasiado habituados a consumir. Daí que “aprender” esteja associado a repetir e decorar conhecimento estagnado em vez de incentivar a descobrir, a sentir, a pensar. Até a disciplina de Filosofia, criada precisamente para isso, deixou de ensinar a filosofar no presente e passou a obrigar os alunos a reproduzir aqueles que filosofaram no passado. Pior, essa referência desbotou: a discussão sobre se deve entrar ou sair do programa escolar atesta bem o grau de prioridade que lhe é atribuído. Se as pessoas não aprendem a pensar bem, e a pensar por si, ficam completamente dependentes de quem pense por elas e completamente expostas à manipulação e à deglutição dos discuros instalados, muitas vezes produto de interesses que não são os seus: comerciais, industriais, corporativos, políticos e ideológicos. O mundo social é-lhes apresentado como “natural” e não têm capacidade de raciocínio e observação para compreender que tudo é uma construção e que por isso nada é “inevitável”, “óbvio” e “natural”, e que todos somos responsáveis pelo nosso destino. Por isso todos devemos reclamar o direito a ter voz e devemos usar esse direito, se para ele competência tivermos. Mas temos?

Bastava alguma atenção à disciplina de História para perceber como, à distância, custa a crer como as pessoas de outros tempos que, por exemplo, elegeram déspotas ou viveram sem soberania individual e colectiva, se deixaram levar pela miopia das modas (que dão certos pensamentos como “naturais” e “universais”) em cada época do desenvolvimento humano. Se a nossa é uma dessas épocas cruciais, qual a miopia do momento? O medo é o mesmo, usado indiscriminadamente para controlar as populações e confiná-las à obediência dos poderes instituídos, eles próprios confusos e vítimas de manipulações e contra-manipulações de ordem vária. Porque todos, governantes e governados, estamos no mesmo caldeirão e a sopa que está ao lume ainda é, por enquanto, feita de promiscuidade moral, de inconsciência ética, de ilusão egóica, enfim, de subdesenvolvimento do potencial humano.  

No fundo, os séculos passam e a questão é sempre a mesma, quando se mexe na liberdade mexe-se na responsabilidade. Quando este par não está saudável, o que definha é a confiança. Quando não há confiança, estão criadas as condições para o medo vingar. E, onde há medo, haverá sangue. Lá se vai o nosso sistema imunitário e tudo aquilo que tememos tem condições para, de facto, se tornar realidade. Precisamos responsabilizar-nos para nos podermos libertar e precisamos libertar-nos para nos podermos responsabilizar. É isto que importa, mais do que apontar para o outro, educarmo-nos a trabalhar a partir de dentro. E depois ensinar as nossas crianças a trabalhar a partir de dentro, a pensar por si, a reparar no que sentem, a observar as suas emoções, senti-las a aparecer e a desaparecer. Todos somos formados no caldo materno e paterno e por osmose absorvemos os códigos culturais do nosso círculo de convivência. É por isso que temos que ser o exemplo e  explicar às nossas crianças, na vida prática, o valor da liberdade e da responsabilidade. É isto que advogam os ainda escassos movimentos de Parentalidade Consciente.  Mas sabemos que não é isto que acontece agora.

Sabemos que muitos educadores e muitos pais não se podem queixar dos governos porque, em casa, é habitual praticar a manipulação “natural” dos castigos e das recompensas, se te portares bem acontece isto, se te portares mal acontece aquilo, se passares o ano ganhas isto, se chumbares não tens playstation. Como este, multiplos exemplos de desresponsabilização e desempoderamento são praticados todos os dias pelas várias figuras de autoridade que há nas nossas vidas, e por cada um de nós, sem necessariamente nos apercebermos disso, emersos na voracidade do dia-a-dia. Esta cultura, que absorvemos desde o berço, que os nossos pais herdaram dos seus pais, que a herdaram dos seus pais, é depois extensível ao resto da sociedade, onde vamos perpetuar o que aprendemos. Se é isto que andamos a plantar como podemos querer colher algo diferente? Não basta ter um belo plano A ou B para lidar com a pandemia ou outra situação calamitosa. “A cultura come a estratégia ao pequeno almoço”, disse P. Drucker. É preciso um trabalho mais profundo, continuado e lento, para mudar o caldo cultural onde se forja o carácter e o “padrão de normalidade”. E não é fácil implementá-lo porque também nós temos medo, também nós receamos desafiar o sistema, também nós estamos desiludidos, também nós estamos acomodados e queixamo-nos como se não fosse também responsabilidade nossa. Não é fácil mas, se não o fizermos, ninguém o fará por cada um de nós.

Apontar impedimentos externos e condições desfavoráveis é mais do mesmo. Se essa justificação colhesse, nunca o 25 de Abril teria visto a luz. Foi um acto intrépido e altamente perigoso para os protagonistas e suas famílias. E foi esse acto consciente e deliberado de desobediência civil –para obedecer à consciência moral individual de cada actor– que nos devolveu a liberdade. Não soubémos aproveitá-la na totalidade porque não tinhamos essa prática: nem da liberdade nem da responsabilidade. Leva tempo. Leva esforço, coragem, determinação, até chegar a novos paradigmas de pensamento. Até que aquilo que poucos pensavam passe a ser o pensamento de muitos.

Nesta época de excepção, vital para a humanidade, cada um tem a liberdade e a responsabilidade de se assumir como autoridade máxima na sua própria vida, de não ser apenas mais um carneiro ao sabor da corrente. Não poderá fazê-lo sem algum grau de auto-conhecimento e não lhe servirá de nada se não navegar na sua própria humildade e no respeito por cada um dos seres com que se cruza na sua vida. Mas para nós, portugueses, é fácil fazer descambar a humildade para a subserviência. A humildade é uma forma de nobreza, a subserviência é uma forma de escravidão.

Uma coisa que todos podemos fazer é tomar conta de nós e isso começa também por tomar conta do nosso corpo, fortalecer o nosso sistema de defesa interno. Respirar ar livre, de preferência puro. Tirar a máscara sempre que possível. Exigir essa possibilidade. Contestar as medidas específicas que obrigam a respirar ar viciado sem intervalos regulares. Comer com qualidade e equilíbrio, aumentar drasticamente o consumo de alimentos não processados e sem químicos. Fazer exercício físico regular. Brincar e divertir-se. Agradecer as pequenas coisas boas da vida. Dar e receber expressões de afecto diariamente, com toque, tendo os cuidados julgados necessários. Não julgar ou condenar os outros pelas suas opções. Observar as emoções, perceber como funcionam. E depois disto talvez seja mais fácil observar, com distanciamento emocional, a cultura de medo e manipulação em que vivemos. Para poder tirar conclusões e definir o rumo da nossa vida. 

A liberdade e a responsabilidade são duas faces da mesma moeda e começam sempre pelo exemplo, na primeira pessoa do singular. Se nesta e naquela situação este ou aquele usou ou deixou de usar máscara será uma árvore no meio da floresta e talvez, apenas isso, uma notícia da silly season.

3 Comments

Núria Duarte
Novembro 5, 2020 2:50 pm

Paulo, que bom ler as tuas palavras, um oásis colorido no meio deste deserto cinzento em que nos encontramos. Ainda bem que vou encontrando pessoas VIVAS e lúcidas por aí. Muito muito obrigada ❤️

Maria do Céu Lopes Tavares
Outubro 25, 2020 10:40 am

O meu desafio, HOJE …em todo o meu presente é questionar-me…o que é que EU posso acrescentar, para fazer acontecer diferente…e não é preciso defender causas distantes…mesmo ao nosso lado existe sempre algo, que requer de nós, esse olhar…esse dar-nos…essa verdade que existe dentro cá dentro que cria empatia (claro que cria resistência também), mas que contagia. Cada vez mais consciente que para fazer acontecer, muitas vezes tenho de me desapegar…fui eu…para outros EUs renascerem e a obra surgir.

Andresa Olímpio
Outubro 15, 2020 6:40 pm

Paulo, é caso para recordar o professor Agostinho da Silva. A ideia de sermos objecto de educação, em vez de instrução, conduz-nos à obediência que assenta no medo de me responsabilizar por mim. A educação incita-nos a cumprir ordens e livra-nos de pensar e de ter responsabilidade. É uma pena que tomemos a vida como uma sucessão aborrecida de dias e que não lhe tomemos o gosto. Sem o abraço, o afecto, o carinho, a proximidade dos corações e das almas não criamos, não nos apaixonamos, não choramos, não cumprimos os acordos que nos foram destinados. O caminho ficam por fazer e morrer será ainda mais triste. Um abraço. Escreve mais.

Leave a Reply