1. CULTURA E REEDUCAÇÃO PELA POESIA
A Cultura é o caldo onde estamos mergulhados e onde somos moldados, por imersão. Olhando à nossa volta e para dentro de nós, talvez não seja exagerado dizer que o caldo azedou.
Os valores são aquilo a que damos valor – a valorização dos aspectos materiais, para ostentação ou para irresponsável conforto, a valorização das aparências, a legitimação do lucro desproporcional, a banalização da segregação e do salve-se quem puder, são aspectos da cultura do exterior e da existência, por oposição (e dissociação) à cultura do interior e da essência, que valoriza a empatia em vez da indiferença, a cooperação em vez da competição, a partilha em vez da acumulação, a honestidade e a ponderação em vez da especulação, a integração em vez da segregação, a paridade em vez da superioridade, a sustentabilidade e a responsabilidade em vez da impunidade.
O mundo mudou e a sociedade estremece, muito. O sistema de educação não está a conseguir travar a insustentabilidade provocada pela cultura do exterior: porque foi fundado com base nesses valores (acima mencionados) e as mudanças entretanto ocorridas são insuficientes porque não são estruturais.
O sistema actual não nos prepara para as novas realidades sociais e psicológicas. Pede-se socorro aos chavões “criatividade” e “motivação”; e, para os conseguir gerir, “respeito” e “disciplina”. Como conjugá-los, permitindo aos jovens e aos adultos conquistar o equilíbrio necessário aos desafios do séc. XXI ?
O séc. XX privilegiou aspectos externos do conhecimento, focando-se em resultados e comportamentos, aos quais correspondem verbos como ter e fazer. Esta opção objectiva certos aspectos da realidade, torna-os mensuráveis, e advoga a sua homogeneização para controlar o processo de desenvolvimento da sociedade.
Mas tanto as salas de aula como as ruas mostram uma eloquente insatisfação e um desequilibrio que não será resolvido enquanto também não dermos atenção aos aspectos internos do conhecimento humano. O que está antes do comportamento, antes do Fazer, antes do Ter: o enfoque no Ser.
A noção de identidade, individual e colectiva, estrutura a percepção do Ser. Para que o Ser se possa auto-conceber e exprimir plenamente, é necessário convocar os dois grandes sistemas operativos do cérebro: pensar e sentir.
A forma como pensamos estrutura a nossa relação com a realidade mas a forma como sentimos também; é a partir dessa interacção que vamos moldando a nossa vida. Quanto mais se perceber e se sentir a si próprio, mais facilidade terá um indivíduo em se relacionar harmoniosamente com os outros: conceber a diferença como complementaridade e cooperação. Essa capacidade de se perceber e de se sentir a si próprio é não só uma forma de apaziguamento mas também o veículo para uma expressão autêntica, mais ou menos artística, mais ou menos poética, em que o indivíduo dá ao mundo uma parte de si transmutada em voz, gesto, movimento ou outra forma capaz de suscitar a fruição estética (vem de aesthesis – faculdade de sentir, sensação). Até porque muitos aspectos da nossa vida não são explicáveis ou sequer verbalizáveis.
A poesia não é só uma práctica literária, é um modo de se relacionar com a beleza intrínseca do mundo e com subtilezas nem sempre visíveis às mentes apenas focadas nos aspectos exclusivamente exteriores da realidade.
Porque a realidade é habitada por outras camadas e essa inteireza é que é poética, como tanto e tão bem insistiu a grande poeta Sophia.
2. APRENDIZAGEM, EMPATIA E RELAÇÕES INTERPESSOAIS
Viver não é dar explicações, nem receber, embora essa dimensão esteja exacerbada na nossa actual cultura. Mas, noutras culturas, a componente da pura fruição estética do mundo natural e humano, sobretudo através da contemplação, são muito valorizadas por terem um papel fundamental no equilibrio do ser e na criação de condições para uma interpessoalidade mais fluida e menos atribulada.
A contemplação do exterior cria espaço interior. Esse espaço interno atenua ou elimina a necessidade de reação automática ou implusiva aos estímulos do exterior. Se o ser não tem espaço interior sente-se desprotegido e reage com a urgência de quem sabe que não tem pára-choques, ou airbag: qualquer toque pode atingi-lo no miolo.
Para esta mente, qualquer movimento do outro na sua direcção, mesmo involuntário, pode ser vivido como uma ameaça. O espaço interno, ao desactivar o modo PERIGO (na maior parte das vezes inconsciente), disponibiliza o ser para a sua natural e vital capacidade de empatia: ligação em vez de separação, continuidade em vez de choque, fruição em vez de esforço.
A valorização da contemplação forneceria um grande instrumento de aprendizagem pois quanto mais espaço interno tiver um ser, mais se sente na continuidade do mundo, mais se sente disponível para apreender novas realidades, isto é, frui-las e integrá-las em continuidade. Outro tipo de escola e outras instituições de aprendizagem formal poderiam contribuir para menorizar os desequilibrios do foco na cultura da exteriorização (da avaliação, da competição, da comparação e da exclusão) mas, de uma forma geral, grande parte da nossa expectativa sobre o alcance da aprendizagem formal está sobredimensionada.
A cultura, o caldo, é a dose de leão onde construímos o nosso ser até porque é esse caldo que formata o nosso modo de receber aquilo que as instituições formais propõem. Isso inclui todas as rotinas quotidianas e excepções festivas, superficiais e profundas, as relações familiares, de vizinhança e amizade, o modo como percepcionamos e interagimos no lazer e no trabalho, e todos os outros aspectos da vida que disfarçadamente compõem a nossa aprendizagem informal e que por isso mesmo são experienciados com menos distância e menos filtros pessoais.
Apesar da boa vontade de muitos sistemas de conhecimento, a sociedade como um todo aprende devagar. As instituições de aprendizagem formal acreditam que a mudança e a aprendizagem dependem sobretudo de aspectos cognitivos quando, na verdade, os aspectos emocionais (referidos acima) são muito mais determinantes.
3. UM SISTEMA ASTÍSTICO-PEDAGÓGICO: FRUIÇÃO ESTÉTICA E AUTOCONHECIMENTO
Descobri que podia contribuir para um mundo melhor através da minha paixão pela escrita- leitura e, em particular, pela poesia. Desenvolvi um sistema artístico e pedagógico que se manifesta em espectáculos, cursos, workshops, team building e consultadoria que põe em prática os valores acima mencionados. Este sistema tem 3 conceitos como suporte: Imaginação Sensível, Desprogramação Operacional & Consciência Criativa.
A Imaginação Sensível é a capacidade de produzir representações mentais internas acompanhadas de uma experiência sensorial directamente associada. A Consciência Criativa é a capacidade de reconhecer os processos criativos (operados em conjunto pela mente e pelos receptores sensoriais espalhados pelo corpo) através dos quais combinamos os estímulos que moldam a nossa percepção da realidade.
Se atingirmos um certo grau de concentração (oposto: desconcentração) e descontração (oposto: contracção), podemos reparar naquilo que estamos a sentir durante o acto de imaginar determinada coisa. Quando descrevemos esse processo, quando o verbalizamos, as áreas do cérebro responsáveis pelo pensar e as áreas responsáveis pelo sentir são postas em interacção através do corpo caloso, activando o nível de consciência de si imediatamente superior.
Tal como o hidrogénio e o oxigénio (ambos no estado gasoso) se podem combinar produzindo água (estado líquido), o pensar e o sentir combinam-se de modo a saltar para um nível de realidade que não estava presente nas suas isoladas premissas. O exercício produz uma experiência interna que permite saltar do significado para o sentido. À dimensão abstracta do significado vem-se juntar uma camada concreta, uma sensação individual, e as duas culminam num sentido: um pensamento-sensação que organiza a experiência vivida pelo sujeito.
Utilizar a tecnologia da escrita e da leitura para registar estes processos de imaginação e sensibilidade aos estímulos internos “obriga” o cérebro a ligar os terminais que temos tendência a separar, criando coesão perceptiva. É uma forma de contemplação, ou de
meditação activa, artística e terapêutica, no sentido em que a expressão da alma tem a faculdade de nos criar espaço interno, de nos devolver o centro e de nos acalmar.
A Desprogramação Operacional é usada para fazer as operações a que estamos habituados mas de forma diferente, por vezes aparentemente absurda, obrigando o indivíduo a olhar ou sentir um determinado universo começando por um outro ponto de partida. Esta atitude, aplicada a diferentes exercícios, abre espaços que enfraquecem as rotinas sinápticas, permitindo novas possibilidades de leitura do mundo.
Outro conceito importante é a Sensorialização Verbal, a capacidade de interligar o universo verbal e o sensorial, isto é, por um lado, sentir os efeitos da vibração da palavra no corpo; e, por outro, converter as sensações corporais em elementos verbais. E ainda decodificar e registar, sempre através do verbo, a interligação das impressões vindas dos diferentes sentidos, como a côr de um cheiro ou o sabor de um gesto, que vulgarmente designamos por sinestesias.
4. O PRAZER, A LEVEZA E A FORÇA DA COOPERAÇÃO
A criatividade humana habita todos os seus exemplares embora alguns factores possam contribuir para esconder esse tesouro. Na maioria das vezes as pessoas não exercitam ou não valorizam ou não têm consciência da sua criatividade. Ou não encontram os ambientes onde ela naturalmente se pode desenvolver, brotando do ser como a água da fonte. E mesmo que o consigam ainda precisam ter auto-estima suficiente para serem capazes de a reconhecer.
Dito isto, tenho como principal prioridade desenvolver regras e modelos de relação que geram os ambientes onde as pessoas se sentem tão naturalmente à vontade que a criatividade simplesmente transborda inadvertidamente de dentro para fora. Ainda que sem fundamento real, muitas pessoas sentem-se ameçadas pela mera presença de outras. Muitas vezes por razões invisíveis, aparentemente absurdas, relacionadas com experiências do passado que resultaram em conclusões sobre a vida e as pessoas. Para que essa sensação desapareça, é necessário instalar um clima de fraternidade através do exemplo e também introduzir certas regras de relação (que não existem no chamado “mundo lá fora”) mas que são necessárias para que todos se possam sentir em segurança. Uma vez ultrapassado, esse travão transforma-se num acelerador pois secretamente ansiamos por uma partilha prurificada que nos devolva a sensação de pertença a algo maior que nós.
Muitos cientistas já se debruçaram sobre os neurónios-espelho e outros fenómenos que nos mostram que estamos intrínseca e biologicamente ligados uns aos outros e que essa é uma das nossas mais marcantes e vantajosas características (desde que não se invertam os processos, como descreve Simon Sinek*). O trabalho com os outros transforma-se num jogo, por vezes numa brincadeira, e as pessoas redescobrem dentro de si aspectos completamente abandonados e vibrantemente desejosos de finalmente se poderem expressar. As habituais avaliações de de execução e performance são também um travão ao bem estar e à criatividade. Apesar de tão familiares (escola, trabalho, etc.) apenas servem de motivação a alguns e não pelas melhores razões. Por isso são abolidas, para justamente redireccionar a motivação e mudar a fonte de validação para o interior do autor de circunstância. Se as regras forem muito graduais e balizarem o curso dos trabalhos, as pessoas não se sentem perdidas num vazio e avançam pela diversão, pela cumplicidade e pelo simples facto de naturalmente, abolidos os habituais travões, estarem equipadas para isso. Assim sendo, procuro sempre, independentemente de serem cursos, workshops, espectáculos, contos, formações, consultadoria, criar um ambiente de concentração descontraída que privilegia a dimensão lúdica e afectiva como motor da criatividade e do conhecimento literário e humano.
* TED Talk “How great leaders inspire action”
PAULO CONDESSA